Você pode fingir que é meu namorado?
Um flashback psicodélico de um casal de garotos é retratado em uma autobiografia como um relacionamento regado a liberdade, arte, loucuras e contradições
“Juntávamos nossos lápis de cor e folhas de papel e desenhávamos feito crianças ensandecidas, ferozes, noite adentro, até que, exaustos, caíamos na cama”. Em um mundo paralelo alimentado por lampejos de infância, amadurecimento, arte, medo, coragem, liberdade e loucura, Patti Smith e Robert Mapplethorpe escreveram nas paredes psicodélicas da Nova York dos anos 70 boa parte dos versos que compuseram a poesia lunática de suas vidas. A artista Patti mostrou através da biografia “Só Garotos” que mais do que artes plásticas, poesia, fotografia e música, Robert e ela não só viveram para a arte, como a tornaram um modo de vida. “Só Garotos” é uma metamorfose contínua com reflexos de seus progressos e retrocessos durante o tempo em que compartilharam na Terra suas infâncias eternas.
Após a leitura da obra “Só Garotos”, a sensação que se tem é que apesar de parecer uma obra clichê de “sexo, drogas e rock and roll”, ela extrapola essa visão reducionista e nos toca, nos torna íntimo dos dois personagens. Em alguns momentos, nos encontramos andando pelas ruas do Brooklin, folheando um livro na Scribner’s ou observando o colar de miçangas de Robert. Os recursos narrativos utilizados, como descrições breves, porém ricas das passagens de suas vidas, palavras doces conjugadas com realidade, detalhes e resgates de grandes nomes da arte mundial e consultas, flashbacks ou passagens à memória da personagem, fazem com que o leitor perceba a mudança de Patti e Robert, mas não perca de vista a referência infanto-juvenil desses dois garotos.
O resgate contumaz de memórias ligadas às questões familiares e religiosas de ambos é reforçado durante toda a obra como uma forma de evidenciar ou simplesmente registrar os possíveis paradoxos, medos e angustias, assim como, a coragem e a liberdade encarados, por Robert e Patti, durante suas vidas. A autobiografia, além de contar a história deles, é uma ilustração e um registro legítimo da efervescência cultural norte-americana do final dos anos de 1960 e todo ano de 1970. É também, um recorte histórico visto de um ponto de vista subjetivo, regado a doses de arte, culto de uma época e um estilo de vida.
Apesar da visão romântica de muitas situações que viveu e até mesmo de uma linguagem, às vezes, fortemente desenhada, Patti desenvolve com coerência e medidas certas de realidade e racionalidade sua obra. Outra característica observada, é que a autora transita em uma fronteira pulverizada entre o mundo público e o privado, pois ao tornar sua vida e a de Robert pública e acessível através do livro, ela traduz possivelmente a conquista de uma das suas ânsias apontadas na obra. “Eu ansiava por honestidade, mas encontrava desonestidade em mim mesma. Por que se comprometer com a arte? Pela autorrealização ou pela arte em si mesma? Parecia um capricho somar-se à massa de excessos, a não ser que isso oferecesse iluminação”, pontua em seu texto biográfico. O que se percebe é que mais do que pulverizada essa fronteira entre a vida pessoal e artística (profissional) se confunde durante o livro e nos transmite a sensação de que é assim durante todo o tempo em que ela relata parte de sua vida, com momentos mais intensos e mais leves.
A obra caminha em sua maior parte entre momentos de dualidade, mas a marca principal é a lealdade, a cumplicidade, o espírito jovem e o compromisso com a arte que ambos possuem. Simbologias de desenhos, colares, traços, versos, sexo e músicas compõem a transição e o desenvolvimento humano desses companheiros que vai da miséria de comer pão adormecido com carne enlatada ao hall da fama dos artistas reconhecidos mundialmente. Amor, lealdade, arte, liberdade, drogas, sexo, filhos, Aids, morte, música, religião, família. Tudo é harmonicamente orquestrado em algo realmente grande, quase parafraseando Robert, conhecido como: vida.
Essa autobiografia, assim como outras, não é só um registro pessoal da vida de uma artista, mas um reflexo real de uma época e de uma sociedade, um recorte não ficcional que mereceu e foi levado para os livros para mostrar que com polêmicas ou sem polêmicas, com riquezas ou sem riquezas, biografias e autobiografias de qualidade devem ser escritas, guardados os devidos compromissos com a honestidade e com a arte. Com esses requisitos essas obras conquistam autonomia para se bancarem e se consolidarem não como um mero registro pessoal, mas como um complemento artístico, humano e social ao mundo. “Só Garotos” é um exemplo de que não se pode tentar asfixiar, como vem acontecendo no Brasil, importantes relatos de vida que embasam e consolidam um importante segmento artístico conhecido como biografia que vem sendo suprimido no Brasil.
Por: Dayse Santô
Fotos: Pinterest